quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Uma carta para si


Querida Leninha,

Espero que estas curtas linhas te encontrem de boa saúde. Eu por cá vou bem, a mãe e a tia continuam bem e começaram finalmente a praticar natação.


Lembram-se? As cartas costumavam começar de maneiras similares a esta. Chegavam com notícias alegres de pessoas distantes, ou outras nem tão felizes assim de pessoas mais próximas. As pessoas escreviam para familiares e amigos, só para dizer “olá, saudades tuas”.
Eram cartas de amor, de amizade e até de desafecto, onde as pessoas expressavam os seus sentimentos, contavam as novidades ou pediam favores. Sempre gostei muito de receber e escrever cartas, ainda hoje fico feliz por receber uma carta. Só é pena que essa felicidade dure tão pouco, pois os envelopes que recebo hoje são maioritariamente portadores de contas!

Muitas cartas escrevi eu nos tempos da escola, para as tias que moravam em Portugal., para a irmã e os amigos que ao fim de algum tempo também acabaram por se mudar para lá, para um ou outro professor doente. Lembro-me que antes de uma carta haviam sempre dois ou três rascunhos, porque o primeiro era mostrado a mãe para que se corrigissem os erros, e os outros eram as tentativas de tecer uma missiva perfeita, sem letras tortas ou borrões.

Ah! E havia também os amigos por correspondência! Pessoas que nunca chegamos a conhecer pessoalmente, mas com quem trocávamos ideias, a quem mandávamos fotos e pequenas lembranças. Tive 4 ou 5, todos de Portugal, porque a língua era um factor condicionador. Alguns “conheci” por intermédio de amigos, outros porque encontrei o endereço em alguma revista chegada a São Tomé com meses de atraso.

Hoje essas cartas são meras recordações, guardadas numa caixa de sapatos, ou esquecidas em alguma gaveta bolorenta. As pessoas não mandam mais cartas, escrevem emails ou mensagem de texto pelo telemóvel. Grandes distâncias são vencidas por pequenos cliques! E aos poucos esquecemo-nos de como se usa o papel e a caneta, até os trabalhos da escola são entregues “batidos” no computador.

Há anos que não vemos um carteiro em São Tomé e Príncipe. Alias, eu não me lembro de ter alguma vez visto um, desses de farda e a bolsa cheia de cartas, nas ilhas maravilhosas. Talvez por ter tão pouca idade (e aí o “pouca” depende efectivamente de quem lê!). Sei que antes da independência eles existiam, mas parece que nos emancipamos deles também!

Nós embrenhamo-nos tanto pelos caminhos da informática que acabamos por perder certos laços e entregarmo-nos aos braços da solidão cibernética. Chegamos a uma época em que as pessoas sentem preguiça de mandar um postal quando vão de férias, mas não sentem cansaço nenhum depois de passarem mais de 5 horas em frente ao computador ou depois de trocarem mais de 100 SMS (Short Message Service- serviço de mensagem curta por telemóvel) com os amigos.

Não quero com isso dizer que o progresso é maligno, longe de mim uma afirmação dessas! Quero dizer que devemos prestar mais atenção ao homem, pois a máquina veio para ajudar, não para atrapalhar as relações interpessoais. Claro que é óptimo saber notícias da família a qualquer hora, ou “reunir” pessoas em pontos distantes do globo para uma reunião via videoconferência.

São facilidades que aceleram os processos de comunicação e nos fazem ganhar tempo numa altura em que ele é dinheiro. Mas e aonde ficam os pequenos detalhes como perceber que alguma coisa está mal, só de olhar para a cara do amigo, se vocês só se “falam” por SMS? Onde fica o sentimento de vitória que vem depois de demorar meia hora para perceber que afinal era um F em vez de um J? Onde ficam as emoções, os sentimentos? Provavelmente perdidos na rede quando a caixa de correio está cheia, ou o telemóvel está desligado. E desejando que descanse em Paz, peço perdão ao actor Raul Solnado para o mudar a sua célebre frase: “ façam o favor de escreverem uma carta!”


E Assim sem mais me despeço querida amiga, sempre com votos de que as coisas continuem a correr-te muito bem.

PS: parabéns pelas recentes conquistas!

Beijinhos,

Aoaní d’Alva.

É boato!

Como chefe de contabilidade, Filipe chegou ao trabalho pontualmente as 8 horas. fez tudo o que sempre fazia, verificou os email, participou da reunião de chefes de secção, as 10 ligou a mãe, e ao meio dia e 45 foi almoçar. Ele era assim, programado ao mais pequeno pormenor. não chegava atrasado a lugar nenhum, e quando acontecesse algum imprevisto, tratava de avisar com urgência as pessoas que pudessem estar a sua espera.
Educado ao extremo, e completamente reservado na sua vida pessoal, Filipe sempre foi alvo de curiosidade
por parte dos colegas. Sempre houve, principalmente por parte das senhoras muito interesse por escrutinar o Filipe além do trabalho. todas as tentativas no entanto foram falhas. Nos quase três ano em que trabalhava na firma, nunca tinha saído com nenhuma das moças que tão abertamente se a tiravam em seus braços, e podia-se contar pelos dedos de uma só mão as vezes em que tinha ido beber um copo com os "rapazes".
Todo esse secretismo em vez de afastar os curiosos só os fazia crescer mais em torno de Filipe. No inicio do segundo ano de trabalho começaram a surgir boatos de que ele era gay. Alguém da empresa que tinha um amigo que conhecia alguém que tinha um primo que conhecia o suposto namorado do chefe da contabilidade, fez circular a "notícia". Uma semana depois já se falava na possibilidade dele ter contraído a sida.
Dois meses depois de começar o falatório, Filipe foi chamado pela direcção da empresa para que esclarecesse as duvidas que se levantavam. Ultrajado recusou-se a responder ao que lhe parecia um abuso de poder. Questionou a autoridade dos chefes sobre a sua vida privada acusando-os de intromissão, e asseverou que caso fizessem mesmo questão de invadir a sua privacidade, poria o seu cargo a disposição de outrem.
E foi o acender do rastilho para o barril de pólvora. No mês seguinte toda a cidade "sabia" que Filipe era gay e que definitivamente tinha sida, porque só os gays possuíam essa doença. Enquanto se discutia em praça pública a sua vida, Filipe travava na sua intimidade outra batalha. A mãe fora despedida por causa da fofoca, Rachel, jovem extremamente religiosa, moradora de uma cidade vizinha com quem esperava casar, também ouvira os dumores e rompera o namoro secreto que vinham mantendo a mais de 3 anos.
Para completar o quadro, surgiu o boato de que o jovem vinha desviando verbas da empresa para uma conta num paraíso fiscal. Foi suspenso das suas funções para que se averiguasse a procedência das informações.Então Filipe sentiu o mundo desmoronar em cima da sua cabeça, teve um esgotamento nevoso e entrou em surto psicológico. Hoje está internado no hospital psiquiátrico da cidade, nunca mais voltou a si.
Os boatos, as fofocas, os rumores e os mexericos pertencem todos a mesma categoria: noticia sem fundamento, veiculada publicamente com o principal objectivo de causar dano de algum tipo, quanto mais não seja, chamuscar de leve a reputação de alguém.
Ora, depois de saber que há pessoas como o ex-ministro da agricultura japonês,Toshikatsu Matsuoka, que não aguentam a vergonha e o ultraje que essas acusações acalentam para si e para os seus e acabam por tirar a própria vida, temos que concordar que as vezes esses rumores fazem mais do que chamuscar de leve, eles chegam a queimar por completo uma vida.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

FLAMBA

Flamba vivia em Paris há 15 anos, numa rua estreita a duas quadras da “Champs Elisée”. Nesses longos anos aquela senhora de 40 anos viveu quase que exclusivamente para o trabalho. Tinha saído de Lugarelhos, pequena nação no coração da América Latina, em busca do sonho de ser modelo. A vida não lhe saíra tal como o planeado, o seu percurso fora marcado por várias voltas e reviravoltas, e trilhara um caminho nada esperado.
Há 15 anos quando chegou a França trazia na bagagem os sonhos, muitas roupas e algum dinheiro. Logo descobriu que as suas economias de 5 anos pouco durariam na cidade Luz e para se aguentar até que “o seu momento chegasse”, como costumava dizer, procurou emprego na única área em que tinha alguma habilidade: cabeleireiro. A oportunidade surgiu quando durante um casting a cabeleireira da agência elogiou o seu penteado. Quando soube que a própria Flamba tinha criado o seu penteado, a cabeleireira convidou-a imediatamente para ser sua assistente.
A criatividade e habilidade com que lidava com todo e qualquer tipo de cabelo fizeram com que fosse promovida em tempo recorde, em menos de seis meses era a chefe de cabeleireiros da agência. No ano seguinte abria a público o Flamba’s, o cabeleireiro mais concorrido de todos em toda a cidade. Os anos que se seguiram foram de trabalho árduo e intensivo, anos em que era o único cabeleireiro a abrir aos domingos, e o único que atendia a primeira-dama e as estrelas de cinema do país “come il fout”.
Chegou a ser convidada para trabalhar com a produção internacional do filme “o quinto elemento”, mas teve que recusar para honrar os seus clientes. O seu espaço produziu cerca de 30 capas da Vougue e da Elle, a própria Flamba tornou-se referencia e concedeu várias entrevistas a essas e outras revistas e aos principais jornais televisivos do país. Flamba era chamada de rainha do pente e da tesoura e tratada com tanta reverência no mudo dos cabelos como Anna Wintour era tratada no mundo da moda.
Nesse turbilhão que era a sua vida profissional ainda houve tempo para um casamento, com um empresário do mundo dos cosméticos, três filhos, duas meninas e um rapaz. Flamba foi feliz por 15 anos, tinha uma vida preenchida nos dois campos, embora passasse mais tempo no trabalho. E finalmente ia levar a família para conhecer a sua terra natal. Correu tudo bem, conseguiram uns dias de férias no verão e embarcaram.
Eles nunca chegaram ao seu destino, o avião em que iam despenhou-se no mar. Todos os noticiários de França e de Lugarelhos fizeram cobertura do acidente. As duas nações choravam amargamente a sua perda. Uma família inteira, varrida do mapa assim, sem mais nem menos. Ao fim de três meses pararam as buscas e eles foram dados como mortos, nem corpos houve para enterrar. Criaram um monumento a Flamba nos dois países.
É uma história feliz com um final triste, bem sei. Mas a vida não é uma história, e não se pode prever o que ela nos reserva. É necessário que façamos uma análise à nossa história e que tentemos ainda que sem sucesso adivinhar o nosso futuro. Porque poucos podem ser como Flamba e ter uma vida marcada por sucessos e momento felizes se não há trabalho, nem esforço. É preciso que nos esforcemos para que quando for a nossa vez, tenhamos feito história e não sejamos esquecidos ao fim de 3 meses, juntamente com os destroços de um avião ou de um barco.
Uma história em memória das várias pessoas que vêm perdendo a vida de maneira tão inesperada e brutal, seja em quedas de airbus no meio do oceano Índico, seja em naufrágios como o do Theresse", ao largo da nossa costa. E como não podia deixar de ser, rendo aqui também a minha mais sentida homenagem ao rei da música pop, Michael Jackson.

sábado, 25 de julho de 2009

Octávio

Octávio acordou transpirado e sobressaltado, sentiu um medo enorme. Nesse estado de espírito, ele levantou-se e foi caminhando sem fazer barulho até ao seu antigo quarto. Há mais de um ano que ele não dormia naquele quarto. Ele e Susana haviam discutido barbaramente naquele dia. Ela acusara-o de ser infiel e pedira o divórcio. Mesmo sabendo que a mulher tinha razão, Octávio reagira mal, insultando a esposa e dando-lhe uma surra. Foi a primeira vez que levantou a mão para uma mulher, e logo para a mãe do seu filho. Depois dos ânimos se acalmarem ele caiu em si, arrependeu-se mas era demasiado orgulhoso para reconhecer um erro e pedir desculpas.
Eles tinham-se casado há mais de sete anos numa cerimónia bonita, só para os familiares e amigos mais próximos. Tinham um filho pequeno, Daniel, de cinco anos. Felizmente naquele dia Daniel tinha ido passear a casa dos avós, não tendo assitido, assim, aquela triste cena. Octávio e Susana eram os dois trabalhadores independentes, ele médico com consultório próprio e ela advogada, também com firma própria. Os dois eram óptimos no que faziam, profisssionais dedicados e cuidadosos, eram adorados pelos colegas, pacientes e clientes.
Na relação deles tudo correu bem, havia respeito, cumplicidade, confiança, paixão e harmonia. Tudo mudou quando Octávio arranjou uma amante. Ao contrário do canta Matias Damásio na musica “A Outra”, essa nova mulher queria vê-lo todos os dias, e ele fazia as suas vontades. Começou por deixar de jantar em casa, depois foi faltando aos almoços também, sempre alegando reuniões e consultas de urgencia. Susana foi relevando até que por fim ele informou que ia voltar a fazer piquetes noturnos no hospital. Diante de tal revelação, ela revoltou-se e perguntou ao marido se além de tudo ele também ia dormir fora de casa!
Encurralado e sem saber o que responder Octávio levantou a voz e mandou calar a mulher. Mas quando Susana não o obedeceu ele ameaçou bater-lhe. A ameaça só conseguiu agita-la ainda mais, pelo que começou então a gritar com o marido. Irritado e alterado como o Octávio estava, só lhe ocorreu fazer uma coisa para calar a mulher. Levantou a mão e deu-lhe um estalo tão grande que Susana caiu para trás, batendo com a cabeça no chão. Ainda levado pela raiva Octávio sentiu uma repentina vontade de pontapear a mulher ali deitada, e foi o que ele fez. Além dos pontapés foram acrescentados socos e abanões.
Alertados pelos gritos de Susana, os vizinhos acudiram mesmo a tempo de impedir Octávio de estrangular a mulher! Foi um choque total, ninguém conhecia essa faceta dele. Aquele casal sempre tão simpático e cordial, que parecia não ter problemas revelara-se uma grande e triste surpresa. Levaram a Susana as pressas para o hospital Aires de Meneses, onde lhe foi diagnosticado traumatismo craniano, fractura do maxilar e de duas costelas. Octávio continuou em casa, aparentemente em estado de choque. Nem ele conseguia entender o que lhe tinha passado pela cabeça para agir daquela maneira tão selvagem.
Susana ficou dois meses internada no hospital, quase sem se poder mexer, sendo alimentada primeiro por via de uma sonda, e depois com a ajuda da mãe e das irmãs. Toda a família dela, tirando a mãe e as irmãs, aconselhavam-na a esquecer o assunto e perdoar o marido, pois ele não havia agido de má fé. Quando ela dizia que de boa fé também Octávio não tinha agido, eles respondiam simplesmente que ele se tinha descontrolado um “bocadinho”. Então indignada Susana discutia com eles e lembrava-lhes aos berros que o marido nem se dignara a pedir perdão nas poucas vezes que a tinha ido visitar.
Foi assim que ao fim do terceiro mês depois do fatídico dia, e contrariando quase toda a sua família e a maior parte dos amigos, Susana entrou na justiça com o pedido de divórcio. Octávio apanhou um susto quando foi notificado e mesmo sabendo que a culpa era sua, pôs-se a difamar a mulher em praça pública e entre os amigos em comum. Depois vendo que a mulher não desistia, chantageou-a, ameaçando tirar-lhe o filho. E de facto com a ajuda de amigos e até de alguns familiares de Susana, quase ficava com a guarda do filho.
Vendo que não conseguia demover a mulher, Octávio recorreu então á “estratégia” ciúmes, começando a desfilar abertamente com a tal amante, uma enfermeira do posto médico. E foi esse comportamento que o destruiu, pois não faltaram testemunhas que quisessem contar a juíza responsável pelo processo, como Octávio era infiel a esposa.
E um ano depois do fatídico dia, precisamente no dia 12 de Julho, lá estava ele naquele quarto outra vez. Nunca mais voltara a dormir naquela cama, agora dormia no quarto que fora do filho. Enquanto relembrava todos os episódios daquele drama em que se metera, amanheceu, mas Octávio não reparou no sol esplendoroso que se fazia sentir naquele domingo, nem nas pessoas atarefadas, correndo para a praça de independência a fim de participarem das festividades do dia da independência… Octávio, já não via nem sentia nada há muito tempo

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O polícia e o ladrão

O polícia
“Pronto, está limpa.” Eduardo Luis se certifica de que a arma está travada e a guarda. Há meses esse mesmo momento se repetia todas as noites. Desde que entrara para o Ronda de Ações Intensivas e Ostensivas, sua vida se transformou. Aprendera tanta coisa em tão pouco tempo. Sua visão de abordagem e tratamento de suspeitos foi o que mais mudou, aprendeu a tratar as pessoas com mais respeito e amabilidade.
Ser policial já não significava maltratar pessoas de baixa renda só pela sua aparência humilde e “duvidosa” como diziam alguns colegas. Desde que fazia parte do “Raio”, Eduardo sentia que a vida no seu bairro e na vizinhança melhorava. Os meliantes já não agiam de forma tão aberta, a população circulava mais tranqüila pelas ruas, mesmo em horas tardias da noite.
Assim como em todas as noites desde que trouxera pela primeira vez uma arma de fogo para casa, Eduardo Luis conferiu todos os processos de segurança antes de ir dormir. No fim da checagem diária, ele se ajoelhou, fez o sinal da cruz e recitou a mesma prece : “ obrigado senhor por todas as graças concedidas. Me dê luz para eu nunca ter que fazer uso dessa arma, amem.”
No dia seguinte o despertador não toucou. Eduardo Luis saiu tarde, mal teve tempo para o café da manhã. Quando assomava a porta de entrada percebeu a movimentação em frente à casa. Um homem desconhecido acabava de assaltar André Luis, seu irmão mais velho, e roubar a sua moto. Foi tudo muito rápido. Quando deu por si, estava em perseguição ao homem desconhecido.
Luzes e sirenes ligadas nada pareciam significar para o meliante. Quando estava perto de alcançar o larápio Eduardo Luis ouviu o primeiro disparo. A bala passou bem perto a seu ouvido! Pelo menos foi o que ele pensou no momento. Assustado com a detonação, Eduardo reduz a velocidade e avalia se sofreu algum ferimento. Tempo suficiente para o meliante se mudar para um automóvel.
Na adrenalina da perseguição a moto roubada, o policial não tinha pensado na hipótese de que o carro que seguia a frente da moto de seu irmão, tivesse ligações com o larápio. De volta a perseguição Eduardo saca e destrava a sua arma. De novo ele faz a prece, “Louvado sejas senhor! Me dê luz para eu nunca ter que fazer uso dessa arma, amem”.
Deus estava distraído no momento do pedido de Eduardo Luis. Sua prece não foi escutada, e cinco minutos depois o policial dispara. Dos suspeitos quem saíam do carro batido no muro, um cai. É o sujeito da moto. O policial pede aos transeuntes que chamem uma ambulância e se prepara para continuar a perseguição aos outros dois meliantes. Depois de caminhar meio quarteirão ele volta atrás.
Eduardo Luis se ajoelha junto ao ferido e tenta estancar a hemorragia em seu tórax. Junta-se gente em redor da cena. Respiração boca-a-boca e massagem cardíaca, tudo é feito. Uma, duas, três vezes e nada. Chega a ambulância, paramédicos, macas, botijas de oxigênio, tudo para nada. “Esse já era” diz um dos paramédicos. Eduardo quase nem escuta, está tendo outra conversa. “Ai senhor, porque não atendeste as minhas preces?”

O ladrão
Claudinho Sentado no ônibus revê mentalmente os planos para por em prática no dia seguinte. Ele, João e Deusidete iam levar acabo uma série de “ações decisivas” como ele chamava. Nunca havia feito algo te tão grande. Fazia um mês que Claudinho tinha começado a roubar. Antes disso ele tinha num emprego, as coisas iam bem na vida. Tinha uma filha linda de um ano e seis meses, uma esposa dedicada e se dava bem com os pais.
Tudo mudou quando a empresa em que trabalhava fechou as portas sem aviso prévio. Simplesmente numa segunda de manhã os funcionários chegaram e encontraram o galpão onde funcionava a gráfica completamente vazio. Foi um duro golpe para as finanças da família. Ele era quem melhor recebia e quem mais contribuía em casa.
Depois de semanas com o jornal de baixo do braço, e batendo de porta em porta a procura de um emprego, Claudinho finalmente anunciou em casa que tinha conseguido. Ia ser vendedor de uma empresa de venda a domicílio. Era uma loja dessas que vende tudo, aparelho Celular, relógio, mp3, aparelho de som para carro. Tudo em segunda mão, com facilidades de pagamento.
Como ele sempre fora uma pessoa honesta, ninguém desconfiou. Quem iria sequer duvidar de Claudinho? O melhor filho do senhor Severino. O caçula que apesar das dificuldades, sempre tinha estudado e ajudado muito a família.Ninguém achou estranho esse emprego caído do céu, com tantas vantagens. O Claudinho era inteligente e tinha estudado.
Nos primeiros tempos o jovem trabalha sozinho. Usa a inteligência e a esperteza, tão elogiadas nos tempos da escola, para criar estratégias de roubo e assalto. Apesar de usar uma arma, ele nunca pensou em realmente disparar e matar alguém. A arma era simplesmente parte da estratégia de intimidação na hora do assalto. Tanto que ele nunca a destravava.
Esse “trabalho” era para ser temporário. Só até “eu conseguir arrumar um bom emprego”, costumava pensar. Mas então as coisas fugiram ao seu controle. Era muito dinheiro entrando em casa. Como iria justificar para a família a saída de um emprego tão bom? E para completar, ele conheceu João e Deusidete. Foi aí que as coisas estragaram. Ele deixou de trabalhar sozinho.
João e Deusidete eram um casal estranho. Ela apesar de pequena parecia mandar e demandar naquele homem de 1,85cm e 95 kg. Eles conheceram Claudinho no dia em que tentavam assaltar uma loja, faziam três semanas. Eles tentaram durante horas e quando estavam indo embora viram de dentro do carro como Claudinho fazia tudo em menos de cinco minutos.
Claudinho ainda se lembra do susto que levou quando saiu da loja de informática. Primeiro achou que fossem policiais a paisana, depois que o iam roubar e matar. No fim o casal explicou que apenas o queriam conhecer porque estavam admirados com as suas habilidades, pois haviam tentado a noite toda arrombar a loja, coisa que ele fez em minutos.

A partir desse dia Claudinho se transformou no mentor do casal. Um professor na arte de bem roubar. Se eles tinham algum lugar em vista para assaltar, Claudinho criava a estratégia e o plano de ação. Tudo correu bem até que João e Deusidete acharam que deveriam tentar eles mesmo criar uma estratégia. Um teste para saber se eles evoluíam.
Claudinho concordou, não ia ser um roubo para o negócio, ia ser quase uma diversão, um jogo. O plano tinha falhas, mas ele achou melhor executar para mostrar na prática quais eram os problemas, por isso não disse nada. Iam roubar uma moto, qualquer moto, de qualquer pessoa. Era suposto ser um plano aplicável em qualquer situação.
No dia do roubo da moto Claudinho soube da surpresa, ia ser ele a executar o plano. Ele ainda tentou argumentar , fazê-los desistir, mas na conseguiu. Mudaram o plano, iam o três ao mesmo tempo, para o caso de algum precisar de ajuda. no momento em que saíram co carro Claudinho teve um mau pressentimento, mas ignorou-o, não queria parecer fraco.
Foi tudo muito rápido. Eles conseguiram roubar a moto, mas quando ele saía da frente do portão da casa do dono da moto, alguém lhe deu voz de prisão. Assustado ele acelerou, fugiu. João e Deusidete já tinham saído, iam mais a frente no carro. Momentos depois Claudinho ouve as sirenes e vê pelo espelho retrovisor um policial motorizado do “ronda”.
Um tiro se ouve. Do carro dispararam contra o policial. “Ele deve estar ferido, reduziu.” grita Deusidete. Claudinho abandona a moto e entra no carro. “esse policial tem sete vidas é?” pergunta João momentos depois, o policial voltou a perseguição. Descontrolado João bate o carro no murro de uma casa. O trio sai do carro e Deusidete dispara para fazer parar o policial.
Claudinho promete sair do mundo do crime se sobreviver. Então soa uma detonação diferente da da arma de Deusidete. Quase no mesmo instante ele sente a dor e cai. Ele sente alguém por perto, mas ñ presta atenção. Só ouve ao longe uma musica tocar.
“... Bateu de frente/ Um bandido e um/ Sub-tenente lá do batalhão/ Foi tiro de lá e de cá/ Balas perdidas no ar ...”

terça-feira, 17 de março de 2009

Hermínia

Hermínia sentou-se à mesa e olhou para o relógio. Marcos estava atrasado, estranhamente atrasado. Tinham-se conhecido há dois anos, quando ele ainda era um recém-chegado as Ilhas, vindo com o primeiro corpo diplomático brasileiro a instalar-se no país. Ela tinha acabado de terminar o curso de direito em Coimbra, e foram apresentados durante uma festa. Lembrava-se desse dia como se tivesse sido ontem, fora mágico! Como ela dizia sempre: “não foi amor a primeira vista, mas que foi qualquer coisa a primeira vista, isso foi!”.
Marcos pediu-lhe em namoro a moda antiga. Depois de duas semanas de encontros, jantares e passeios ele perguntou: “você quer namorar comigo Mínia?”. Hermínia ficou momentaneamente especada a olhar para ele, sentindo a musicalidade do sotaque brasileiro embalar-lhe os pensamentos. Pensando ter ouvido mal ela pediu-lhe que repetisse, e ele assim o fez. Depois de ter a certeza de ter ouvido a coisa certa, Hermínia titubeio e calou-se. Ficou assim nesse pasmar alguns minutos.
Quando, já convicto de uma resposta negativa, Marcos se preparava para ouvir o discurso do “ é melhor sermos só amigos”, eis que ela responde placidamente: “sim”. Agora era a vez dele entrar em choque. Soltou o ar que nem se tinha dado conta de prender e sorriu. Ficaram ainda algumas horas no restaurante, saboreando a estranha mistura entre a leveza do sentimento confessado e o medo de dar os passos seguintes. Para disfarçar o nervosismo Hermínia falava, falava muito sobre praticamente tudo, já Marcos só ouvia. Duas horas depois ele levanta-se, contorna a mesa e dá-lhe um beijo.
As amigas quando souberam do namoro reagiram das mais variadas maneiras. Houve quem desse os parabéns e desejasse tudo de bom, ma também houve quem dissesse que o rapaz não prestava só por ser brasileiro, e ainda quem desse um prazo de semanas até que ele se cansasse. Deu para descobrir as verdadeiras amigas! Ao fim de alguns meses ela apresentou-o à mãe e as tias com quem morava. Correu tudo mal, faltou luz no dia, ela queimou o jantar, a tia Madalena deixou cair o pudim de laranja e a mãe torceu o pé.
Herminia não era uma pessoa supersticiosa, mas depois de tantos acidentes ligou para o Marcos convicta de que aquele dia era um dia de azar. Para seu desespero ele recusou-se a remarcar o jantar para outro dia e pior, avisou que chegaria na hora combinada, ou seja dali a uma hora. E de facto, uma hora depois ele lá estava: recipiente com concons e bananas fritas numa mão, pote de gelado napolitano na outra e garrafa de vinho branco de baixo do braço. Foi uma noite fantástica, e ao fim de umas horas de boa comida e conversa agradável, mais ninguém se lembrava dos azares.
No aniversário de um ano Marcos convidou Hermínia à ir com ele à sua cidade natal, no sul do Brasil para conhecer o seu pai. Ela aceitou impulsivamente, mas passou a viagem toda a martirizar-se. “ E se ele não gosta de mim? E se ele for preconceituoso?” Muitos e ses depois, eles chegaram a Florianópolis. Assim como aconteceu com Marcos Hermínia sentiu uma simpatia quase instantânea pelo senhor George. Foram duas semanas de puro êxtase, em que passou a conhecer mais a fundo o namorado.
Faziam dois anos naquele dia, 14 de Fevereiro, dia dos namorados. Mas Hermínia não sabia se devia comemorar. Há alguns dias que notava um comportamento diferente por parte do namorado. Ela não queria pensar no que se estaria a passar, ou melhor, ela tentava não pensar! Já tinha imaginado tudo, ele tinha outra certamente. Aqueles telefonemas estranhos, os segredos, as saídas injustificadas, tudo isso eram evidências de que havia outra pessoa no meio deles. E agora mais essa, Marcos estava atrasado 2 horas!
Hermínia levantou-se hirta de fúria, pagou a conta e saiu. Fez todo o caminho de volta para casa a praguejar e a injuriar o namorado e a tal amante, prometendo a si mesma que a primeira coisa que ira fazer mal o visse seria acabar com tudo. Encontrou a casa as escuras, “ mas uma da EMAE com certeza”. Mas quando procurava o isqueiro alguém acendeu a luz. A sala estava cheia de flores! Marcos veio da cozinha, ajoelhou-se e entregou-lhe um anel, “ você casa comigo Mínia?”Mínia esqueceu as desconfianças, os medos e as pragas. Era tudo um plano, um plano para a fazer feliz!
Enquanto Hermínia é feliz, vamos sonhar em ser ou ter um Marcos desses, produzido nacionalmente? Feliz Dia dos Namorados! Que são Valentim nos abençoe a todos!

“Pobre menina rica”

Pensei. Pensei bastante. No fim acabei por desistir. Era a quinta vez que eu ali estava, parada no terraço mais alto da casa. Como sempre desisti covardemente, recolhi-me a minha insignificância. Pela quinta vez tentei por fim a esse calvário, a esse vazio que chamam de vida. E novamente voltei para a mim, para mergulhar no desespero de ser um zero a esquerda, um nada.
Porquê ou para quê continuar a viver? Para ver meu mundo desabar toda a vez que o meu pai é internado numa clinica de desintoxicação e reabilitação para viciados em cocaína? Ou para ver a minha mãe deitar-se pelos cantos da casa com o jardineiro ou com os seguranças?
Ontem o amigo do meu pai me ofereceu maconha, disse que era melhor eu começar com algo leve. O motorista passou a mão na minha perna e comentou que eu já tava em tempo de requerer serviço completo. Mal vi minha mãe, era dia de conferir a criadagem. Curioso que até o cozinheiro aqui é homem, não há mais mulheres na casa sem sermos eu e a mãe.
Hoje estou decidida. Já deu, não quero mais ter que ver essas coisas acontecerem na minha vida. Desde os 13 anos que venho fugindo dos empregados da minha casa. Quatro anos em que não pude dormir nenhum dia sem a porta trancada. Quatro anos tentando manter a salvo o que a minha mãe chama de “ membranazinha inútil”.
Ao contrário das outras vezes, não vou mais tentar atirar-me do terraço. Já sei que tenho medo de altura. Hoje vou-me trancar casa de banho do meu quarto e vou cortar os pulsos. Já roubei uma das facas de 150 dólares da cozinha. Ninguém sentirá falta dela, a não ser Jean Pierre, o cozinheiro francês. Daqui a cinco dias alguém vai se lembrar de me procurar, aí então eu já terei partido.
Cortei o pulso esquerdo. Doeu, mas foi uma dor boa. Cada vez sai mais sangue, e cada vez mais me sinto melhor. Descobri que não tenho tanto medo assim de sangue. Essas são as últimas palavras que escrevo, vou cortar o pulso direito. Espero que o céu seja tão bonito como as imagens que vi na capela Sistina, quando visitamos o Vaticano no ano passado.

Esse texto é fictício, mas podia ser real… vamos dar mais atenção aos filhos sobrinhos e irmãos. Dinheiro não é suficiente se não houver limites, princípios sólidos, ética e moral.




foto: internet

Marta

Marta levantou-se a custo, acordada pelos gritos de Reinaldo. Eram casados há dois anos e à dois anos era sempre a mesma coisa. Passou mentalmente a lista de afazeres, tentando encontrar o que poderia ter ficado por fazer. Nada, havia feito absolutamente tudo da lista, até os benditos aquários ela tinha limpo. Será que um dos peixes tinha morrido? “ ah não! se for assim vai ser porrada a noite toda!”
Depois de ver a mulher levantar-se entorpecida e confusa, Reinaldo começa a destilar seu rio de veneno. Primeiro ele ataca a família dela, falando de como são todos “ uns pobres que não têm onde cair mortos, uns desgraçadinhos sustentados por mim!”, depois ela torna-se o centro de toda a sua injustificada fúria. Depois de uma três horas e meia, de insultos, ofensas, agressões psicológicas e muito whisky, ele sucumbe ao álcool e adormece, praticamente desmaiado.
Eram quase seis horas da manhã. Marta olhou para a cama, tentada a continuar o sono interrompido, mas sabia que não podia. Resignada dirigiu-se vagarosamente à casa de banho, só teria tempo para um duche rápido. Uma vez lá dentro olhou-se ao espelho: “ pelo menos dessa vez ele só gritou. Não vou precisar de perder tempo a disfarçar hematomas com a maquilhagem. Pelo menos hoje não há dores a esconder”
Há dois anos que essa situação se repetia, mas nem sempre as coisas tinham sido assim. Quando se conheceram há 4 anos Reinaldo era um promissor jovem executivo, nascido em berço de ouro, ele tinha vindo dos melhores colégios e faculdades privadas do país e esperava alcançar os mais altos cargos na multinacional em que trabalhava. Nem que fosse pelos contactos que o seu pai mantinha com os donos da empresa.
Marta também era executiva nessa mesma empresa, mas ao contrário dele, ela tinha vindo do nada, sempre fora aluna bolsista nos melhores colégios e faculdades publicas do país, por mérito próprio. E foi também por seu próprio mérito que tinha entrado na empresa e chegado aonde chegou: vice-presidente de uma das melhores e maiores empresas do mundo na área dos petróleos. Ela estava onde estava, porque merecia.
Quando se conheceram Reinaldo era um doce de pessoa, sempre simpático, extrovertido e gentil. Foram esses predicados que a tinham feito apaixonar-se por ele. Mas isso mudou bruscamente logo depois que voltaram da lua-de-mel. Marta tinha sido promovida na empresa, Reinaldo não. Desde aquele fatídico dia, tudo se desmoronou na relação deles. Talvez como forma de escape para a frustração, ele começou a beber descontroladamente.
E nos momentos em que se perdia na bebida descontava suas mágoas na esposa, revelando-se um pequeno déspota machista e chauvinista. “ mulher não tem que trabalhar! Lugar da mulher é na cozinha e na cama!” essas e outra pérolas Marta tinha que ouvir todos os dias. Apesar de tudo havia os momentos de quietude no meio da tempestade, momentos em que ele sóbrio pedia desculpas, e voltava a ser aquele ser gentil, educado e apaixonado que ela conhecera.
Era a esses momentos que marta se apegava com todas as forças. Era por esses momentos que não o abandonava. Embora sua vida pessoal fosse um caos, a vida profissional era um perfeito “ mundo perfeito”. Tinha galgado os degraus dentro da empresa sempre de forma limpa, resultado de uma mistura entre trabalho duro, inteligência e integridade.
Talvez ainda não haja tantas mulheres assim no poder, mas há certamente muitas que sofrem de agressão física e psicológica todos os dias, durante anos. Por isso ainda é preciso que haja um dia internacional da mulher, para que os homens saibam que nós podemos fazer tudo quanto eles fazem, e de salto alto!