sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O manifesto do Rei de Medina

Poesia cantada, essa é a essência do rap. Poesia, rima, mensagem, ritmo e música. E foi essa a essência que pude encontrar no "Ermo", o filho recém-parido de Flagelo Urbano. Num primeiro momento não entendi o título, confesso. A riqueza das parcerias, o cantar da dor comum... Não me pareceu muito solitário,  pareceu-me antes, muito solidário. Quando cheguei ao fim do CD mudei de ideias.


O isolamento necessário para o exercício da escrita, da composição, deve ter sido bem expressivo. Quando se consegue como resultado um texto reflexivo, carregado de sentido e significado, esse trabalho de isolamento só pode ter sido complexo.
Se este CD fosse um vinho, seria um desses muito raros que se senta para decantar numa primeira fase e só depois se degusta. Um vinho desses que dá um aperto no coração abrir, mas uma vez aberto, vale a pena todo o sofrimento.

É um ir buscar as raízes africanas, uma defesa tão veemente do pan-africanismo, do angolanismo, do humanismo tão intensos que às tantas uma pessoa começa a pensar com os seus botões: onde é que eu assino?
E no meio disto tudo ainda há a melodia. Não que eu entenda grande coisa de música. Entendo que gosto ou que não gosto. Neste caso gosto. Um estilo que faz lembrar a velha guarda e que foge ao histerismo e a esquizofrenia das fusões forçadas e mal acabadas. Uma música bonita para cantar, muitas vezes, coisas feias.
O CD todo é um item de escuta obrigatória, mas algumas faixas impressionaram-me de forma mais marcante que as restantes. “Griot” foi uma excelente forma de abrir o álbum. Uma ode às tradições orais africanas, aos hábitos quase esquecidos de contar histórias, a busca pela ancestralidade. Uma exaltação as bibliotecas vivas que são cada vez mais escassas, mais difíceis de ser consultadas. A música é também uma posição assumida: “Eu sou um Griot”. Veremos.
Outra música que para mim se destacou foi “Sílaba Silenciosa”. É onde Flagelo Urbano assume um compromisso, claro e objectivo com a palavra. É também uma crítica aberta a alienação das massas (“Quando os fracos e desencorajados levantarem as suas cabeças e deixarem de acreditar na força dos seus opressores. Acreditar é muito mais simples do que pensar, é por isso que existem mais crentes do que pensadores”).
"O Ermo" soou-me como um diário, que canta as suas dores, os seus amores, suas lembranças, suas esperanças. O diário de bordo de um comandante cujo barco se isola mas não anda à deriva.Aos que fogem e se preservam numa gaiola de egocêntrica indiferença, Flagelo Urbano, explica: “Descobri que de nada me valerá fugir afinal, nem de quem ontem era consciente e hoje é comercial. As rosas mortas não impedem o chegar da primavera, quando se é um autêntico profeta para a sua era. Quando o silêncio, a indiferença e a passividade, nada mais são senão o ópio da sociedade …”.
Flagelo Urbano é um solitário, um ermita, um ermo. Um defensor dos direitos humanos que luta sozinho, por escolha própria. E "O Ermo" é um manifesto, contra as injustiças, as ofensas, o ódio, as disparidades sociais extremas que se vão vendo e vivendo. Um trabalho com uma faceta autobiográfica forte, na medida em que revela também muito do que são as convicções e posicionamentos do seu autor.
“Poesia experimental faz quem quer, poesia mesmo, faz quem pode”, José Carlos Ary dos Santos.


Texto originalmente publicano no OnGoma