terça-feira, 27 de março de 2012


As vezes
As vezes o corpo está aqui mas a cabeça não
As vezes nem sei, mas meto os pés pelas mãos
Faço o que devo e o que sei, a partida, que não
Sou em parte airoso gigante e ardiloso anão

As vezes eu queria não ser eu, não ser eu
Eu queria ser ele, ela, Maria, Abreu
Perder o equilíbrio que sei lá quem me Deu
Fugir da luz, andar, correr, voar para o breu

As vezes eu queria não ser assim, forte
Queria poder naufragar meu próprio bote
Maldizer o ser que me deu tanta sorte
Ceifar a vida num único e firme corte

As vezes ser eu é demais, é mais que pesado
As vezes eu queria voltar lá, para o passado
Queria não ter um presente tão atinado
Queria não ver o futuro a partida desenhado

As vezes, as vezes.

27.03.2012
Aoaní d’Alva
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quinta-feira, 15 de março de 2012

Amor já não é o que era

canstockphoto.com.br
José entrou sorrateiramente no prédio onde Maria trabalhava. Cumprimentou discretamente a secretária e foi seguindo em direcção da sala da namorada. Bateu a porta e esperou depois do “entre”. Como ninguém entrasse a moça levantou-se e foi ela mesa abrir a porta, reclamando com os seus botões. Quando abriu a porta com uma certa rispidez, Maria ficou boquiaberta. Lá estava o seu namorado de quatro anos a segurar um carrinho de mão cheio de rosas vermelhas. Era dia dos namorados. Bonita a cena não é? Meio lamechas, hão de dizer alguns, muito romântica dirão outros. Eu digo: triste. Acho tudo muito bonito, mas profundamente triste. O ser humano perdeu de tal maneira a noção do normal, das demonstrações espontâneas de amor e carinho que até para ser romântico extrapola. Mais do que mostrar ao companheiro o que sente, o objectivo passa a ser mostrar aos outros como é grande esse sentimento. Patético. Parece-me que a noção que as pessoas agora têm do próximo está muito ligada ao slogan publicitário da Unitel, “o próximo mais próximo”. O próximo na verdade começa a estar distante. Imbuídos de um espírito consumista desenfreado, os relacionamentos começam a pautar-se pelo eu tenho, eu dou, eu consigo. E tudo é precedido do eu. As pessoas namoram consigo próprias, com a imagem que têm de si. O dia das namoradas – sim, porque aparentemente só elas recebem ou esperam receber presentes, deveria chamar-se dia do comércio. Assim como o Natal e os dias dos pais. Gestos simples como trazer uma flor do jardim da praça (também já quase não há jardins), porque se lembrou da namorada, ou telefonar ao namorado sem ser para pedir, escasseiam. Datas especiais perderam o seu simbolismo para se tornarem grandes points comerciais. As pessoas parece que guardam meses de relacionamento para serem comemorados e exaltados num único dia. Passam o ano todo sem darem flores ou presentes, 12 meses sem beijarem-se ou abraçarem-se em público e num único dia querem fazer tudo! É a correria às lojas, os ursos de pelúcia para cá os ramos de rosas para lá, bancadas montadas nos passeios a vender e embrulhar presentes em papéis com desenhos de corações… Acho chato. Ah! E nessa altura todo mundo diz “amo-te” ou “eu te amo”, conforme as vontades e os sotaques. Seria bonito se a expressão não se tivesse banalizado tanto. As pessoas falam de amor com uma velocidade supersónica. Conheceu ontem, já ama hoje. A palavra amor está tão banalizada que nos próximos dicionários devia vir com a seguinte discrição: “igual à ilusão, ou nada dependendo do contexto”. “O amor é fogo que arde sem se ver” já não funciona! Tem que se ver tudo muito bem, aos mínimos detalhes. Camões se fosse vivo faria versos com euro e choraria pela falta de zeros na conta bancária. O amor já não se constrói, compra-se, de preferência em dinheiro vivo para mostrar o poder aquisitivo. “Um amor e uma cabana” também só resulta se a cabana tiver uns quatro quartos com casa de banho privativa. Antes vendia-se o corpo, hoje vende-se tudo, a alma, a moral, a dignidade o amor… Um dia desses hão de se lembrar de fazer saldos, “amor e dignidade 50% de desconto”. No tempo dos meus avós os relacionamentos eram sérios, senão, não eram relacionamentos. As pessoas “ficam” ou curtem”, têm relacionamentos abertos, casamentos abertos! Eu acho que nasci no século errado… É certo que no tempo dos avós, havia muitos casamentos à três ou quatro. A “outra”, não é uma invenção do Matias Damásio, mas a coisa pelo menos pretendia-se secreta, naquela altura. No tempo dos pais, eles mandaram lixar o secretismo e escancararam a coisa. Ter duas famílias deixou de ser tão absurdo, mesmo que a pessoa não tivesse condições de sustentar se quer uma. E a mulher que resolvesse separar-se? Bem… não fica bem à uma senhora reproduzir a lista de nomes que lhe eram atribuídos. Só garanto que não eram elogios gentis. No meu tempo então, oficializaram a infidelidade, cantaram hinos à tal “outra”. Vangloriam-se por serem as próprias… E eu preocupo-me com a geração que aí vem. O que será deles? Não sei. Só sei que o amor já não é o que era.
NJ 213

quarta-feira, 14 de março de 2012

Expátria amada

Conheço e vou conhecendo vários expatriados. Alias… conheço várias pessoas que não sendo angolanas, escolhem Angola, principalmente Luanda, para viver. Pelas mais variadas razões. Eu própria o fiz, nada contra. O que realmente me levanta sérias reservas é a condicionante do “expatriatismo”. Em Angola há três tipos de estrangeiros, os ilegais, os legais “normais” e os legais expatriados. E dentro dos expatriados há os que só são estrangeiros e os que também são angolanos.

Os expatriados “normais” são os que sendo estrangeiros vêm para Angola com visto de turismo ou trabalho e vão saindo e entrando no país para regularizar a sua situação. Os Expatriados angolanos são aqueles que apesar de possuírem também a nacionalidade local, preferem valer-se da estrangeira para exigir certas regalias negadas aos demais.

Não acho errado haver estrangeiros em Angola, seria no mínimo estranho, na minha condição, esse pensamento. Na verdade acredito que países que sabem lidar bem com as questões migratórias costumam extrair bons dividendos delas. Até porque outras culturas sempre nos trazem novas formas de ver o mundo e novas maneiras de agir perante ele. Se conseguirmos absorver só as coisas boas, tanto melhor.

O que eu realmente acho pouco certo é essa coisa do expatriado. Quando se vai ver o significado da palavra, quase todos os dicionários apontam sinónimos como degredado, desterrado, exilado, proscrito, deportado ou banido. Hora, todos estes substantivos são meio depreciativos e fazem pensar numa viagem forçada, realizada a contra-gosto. Desterro sugere a minha memória, criminosos a serem enviados da metrópole para a colónia como forma de castigo.

Bem, se as viagens são forçadas, não se nota! Os expatriados que eu conheço nacionais e internacionais, pretos, brancos, verdes ou amarelos, têm todos uma coisa em comum, estão cá por vontade muito própria! E fora uma ou outra reclamação ingrata quanto ao calor, ao trânsito e as gasosas, estão felizes. Recebem, na maioria das vezes, salários entre o alto e o astronómico, não pagam casa, têm transporte e direito há pelo menos duas viagens por ano.

Contava-me uma amiga expatriada há dias que tinha pena de uma colega que era nacional. Ela, expatriada estrangeira, tinha carro atribuído pela empresa e mesmo assim, se chegasse meia hora atrasada, que ninguém lhe dizia uma palavra sobre o assunto. De qualquer forma sempre podia alegar que fora culpa do engarrafamento infernal da cidade. Resultava sempre.

Com a colega nacional a coisa era outra, além de não receber lá grandes coisas no fim do mês, ainda era severamente censurada se chegasse atrasada. Com pena da colega nacional, a amiga expatriada lá se decidiu a dar-lhe boleia, já que a outra vivia na sua rota para o trabalho. Ewê! Makongo! A outra quase foi demitida e proibiram-na, isso mesmo, proibiram-na de apanhar boleia outra vez com qualquer expatriado, para que não se atrasasse!

A minha amiga sentiu-se muito triste, claro está. Agora ter que deixar a moça amanhar-se com os dois ou três táxis necessários para chegar ao trabalho fazia-lhe realmente muita pena. E ponto, acabou aqui a história. Qual falar com os patrões e chamar-lhes a razão? Qual acordar um bocado mais cedo para poder dar boleia a moça. Nada. Mas que fique claro que ela sentiu muito.

O que me deixa mesmo lixada nessa coisa do expatriatismo, sim porque já se tornou uma teoria, uma ciência! Dizia eu, o que me irrita realmente nessa coisa toda, é essa de virem, com todas as regalias e vantagens possíveis e não darem nada em troca. E digo nada, porque deixar o trabalho feito não leva a nada. Se não transmitem o seu “know-how”, fica-se sempre a depender deles.

Se há uma coisa que o expatriado, na maior parte do caso tem fobia, é em passar conhecimento. Alegam de tudo, que as pessoas não aprendem, que não vale a pena, só eles dominam a coisa, mas a verdade é que não passam o tal saber. A história de em vez de dar peixes, ensinar a pescar, aqui não tem lugar. Os locais só servem para serem mandados.

Outrora andavam aí a cantar a pátria amada e a fazer contas aos dias que faltavam para o regresso, hoje as contas continuam mas as músicas, essas vão para a expatria amada…


NJ 212