terça-feira, 17 de março de 2009

Hermínia

Hermínia sentou-se à mesa e olhou para o relógio. Marcos estava atrasado, estranhamente atrasado. Tinham-se conhecido há dois anos, quando ele ainda era um recém-chegado as Ilhas, vindo com o primeiro corpo diplomático brasileiro a instalar-se no país. Ela tinha acabado de terminar o curso de direito em Coimbra, e foram apresentados durante uma festa. Lembrava-se desse dia como se tivesse sido ontem, fora mágico! Como ela dizia sempre: “não foi amor a primeira vista, mas que foi qualquer coisa a primeira vista, isso foi!”.
Marcos pediu-lhe em namoro a moda antiga. Depois de duas semanas de encontros, jantares e passeios ele perguntou: “você quer namorar comigo Mínia?”. Hermínia ficou momentaneamente especada a olhar para ele, sentindo a musicalidade do sotaque brasileiro embalar-lhe os pensamentos. Pensando ter ouvido mal ela pediu-lhe que repetisse, e ele assim o fez. Depois de ter a certeza de ter ouvido a coisa certa, Hermínia titubeio e calou-se. Ficou assim nesse pasmar alguns minutos.
Quando, já convicto de uma resposta negativa, Marcos se preparava para ouvir o discurso do “ é melhor sermos só amigos”, eis que ela responde placidamente: “sim”. Agora era a vez dele entrar em choque. Soltou o ar que nem se tinha dado conta de prender e sorriu. Ficaram ainda algumas horas no restaurante, saboreando a estranha mistura entre a leveza do sentimento confessado e o medo de dar os passos seguintes. Para disfarçar o nervosismo Hermínia falava, falava muito sobre praticamente tudo, já Marcos só ouvia. Duas horas depois ele levanta-se, contorna a mesa e dá-lhe um beijo.
As amigas quando souberam do namoro reagiram das mais variadas maneiras. Houve quem desse os parabéns e desejasse tudo de bom, ma também houve quem dissesse que o rapaz não prestava só por ser brasileiro, e ainda quem desse um prazo de semanas até que ele se cansasse. Deu para descobrir as verdadeiras amigas! Ao fim de alguns meses ela apresentou-o à mãe e as tias com quem morava. Correu tudo mal, faltou luz no dia, ela queimou o jantar, a tia Madalena deixou cair o pudim de laranja e a mãe torceu o pé.
Herminia não era uma pessoa supersticiosa, mas depois de tantos acidentes ligou para o Marcos convicta de que aquele dia era um dia de azar. Para seu desespero ele recusou-se a remarcar o jantar para outro dia e pior, avisou que chegaria na hora combinada, ou seja dali a uma hora. E de facto, uma hora depois ele lá estava: recipiente com concons e bananas fritas numa mão, pote de gelado napolitano na outra e garrafa de vinho branco de baixo do braço. Foi uma noite fantástica, e ao fim de umas horas de boa comida e conversa agradável, mais ninguém se lembrava dos azares.
No aniversário de um ano Marcos convidou Hermínia à ir com ele à sua cidade natal, no sul do Brasil para conhecer o seu pai. Ela aceitou impulsivamente, mas passou a viagem toda a martirizar-se. “ E se ele não gosta de mim? E se ele for preconceituoso?” Muitos e ses depois, eles chegaram a Florianópolis. Assim como aconteceu com Marcos Hermínia sentiu uma simpatia quase instantânea pelo senhor George. Foram duas semanas de puro êxtase, em que passou a conhecer mais a fundo o namorado.
Faziam dois anos naquele dia, 14 de Fevereiro, dia dos namorados. Mas Hermínia não sabia se devia comemorar. Há alguns dias que notava um comportamento diferente por parte do namorado. Ela não queria pensar no que se estaria a passar, ou melhor, ela tentava não pensar! Já tinha imaginado tudo, ele tinha outra certamente. Aqueles telefonemas estranhos, os segredos, as saídas injustificadas, tudo isso eram evidências de que havia outra pessoa no meio deles. E agora mais essa, Marcos estava atrasado 2 horas!
Hermínia levantou-se hirta de fúria, pagou a conta e saiu. Fez todo o caminho de volta para casa a praguejar e a injuriar o namorado e a tal amante, prometendo a si mesma que a primeira coisa que ira fazer mal o visse seria acabar com tudo. Encontrou a casa as escuras, “ mas uma da EMAE com certeza”. Mas quando procurava o isqueiro alguém acendeu a luz. A sala estava cheia de flores! Marcos veio da cozinha, ajoelhou-se e entregou-lhe um anel, “ você casa comigo Mínia?”Mínia esqueceu as desconfianças, os medos e as pragas. Era tudo um plano, um plano para a fazer feliz!
Enquanto Hermínia é feliz, vamos sonhar em ser ou ter um Marcos desses, produzido nacionalmente? Feliz Dia dos Namorados! Que são Valentim nos abençoe a todos!

“Pobre menina rica”

Pensei. Pensei bastante. No fim acabei por desistir. Era a quinta vez que eu ali estava, parada no terraço mais alto da casa. Como sempre desisti covardemente, recolhi-me a minha insignificância. Pela quinta vez tentei por fim a esse calvário, a esse vazio que chamam de vida. E novamente voltei para a mim, para mergulhar no desespero de ser um zero a esquerda, um nada.
Porquê ou para quê continuar a viver? Para ver meu mundo desabar toda a vez que o meu pai é internado numa clinica de desintoxicação e reabilitação para viciados em cocaína? Ou para ver a minha mãe deitar-se pelos cantos da casa com o jardineiro ou com os seguranças?
Ontem o amigo do meu pai me ofereceu maconha, disse que era melhor eu começar com algo leve. O motorista passou a mão na minha perna e comentou que eu já tava em tempo de requerer serviço completo. Mal vi minha mãe, era dia de conferir a criadagem. Curioso que até o cozinheiro aqui é homem, não há mais mulheres na casa sem sermos eu e a mãe.
Hoje estou decidida. Já deu, não quero mais ter que ver essas coisas acontecerem na minha vida. Desde os 13 anos que venho fugindo dos empregados da minha casa. Quatro anos em que não pude dormir nenhum dia sem a porta trancada. Quatro anos tentando manter a salvo o que a minha mãe chama de “ membranazinha inútil”.
Ao contrário das outras vezes, não vou mais tentar atirar-me do terraço. Já sei que tenho medo de altura. Hoje vou-me trancar casa de banho do meu quarto e vou cortar os pulsos. Já roubei uma das facas de 150 dólares da cozinha. Ninguém sentirá falta dela, a não ser Jean Pierre, o cozinheiro francês. Daqui a cinco dias alguém vai se lembrar de me procurar, aí então eu já terei partido.
Cortei o pulso esquerdo. Doeu, mas foi uma dor boa. Cada vez sai mais sangue, e cada vez mais me sinto melhor. Descobri que não tenho tanto medo assim de sangue. Essas são as últimas palavras que escrevo, vou cortar o pulso direito. Espero que o céu seja tão bonito como as imagens que vi na capela Sistina, quando visitamos o Vaticano no ano passado.

Esse texto é fictício, mas podia ser real… vamos dar mais atenção aos filhos sobrinhos e irmãos. Dinheiro não é suficiente se não houver limites, princípios sólidos, ética e moral.




foto: internet

Marta

Marta levantou-se a custo, acordada pelos gritos de Reinaldo. Eram casados há dois anos e à dois anos era sempre a mesma coisa. Passou mentalmente a lista de afazeres, tentando encontrar o que poderia ter ficado por fazer. Nada, havia feito absolutamente tudo da lista, até os benditos aquários ela tinha limpo. Será que um dos peixes tinha morrido? “ ah não! se for assim vai ser porrada a noite toda!”
Depois de ver a mulher levantar-se entorpecida e confusa, Reinaldo começa a destilar seu rio de veneno. Primeiro ele ataca a família dela, falando de como são todos “ uns pobres que não têm onde cair mortos, uns desgraçadinhos sustentados por mim!”, depois ela torna-se o centro de toda a sua injustificada fúria. Depois de uma três horas e meia, de insultos, ofensas, agressões psicológicas e muito whisky, ele sucumbe ao álcool e adormece, praticamente desmaiado.
Eram quase seis horas da manhã. Marta olhou para a cama, tentada a continuar o sono interrompido, mas sabia que não podia. Resignada dirigiu-se vagarosamente à casa de banho, só teria tempo para um duche rápido. Uma vez lá dentro olhou-se ao espelho: “ pelo menos dessa vez ele só gritou. Não vou precisar de perder tempo a disfarçar hematomas com a maquilhagem. Pelo menos hoje não há dores a esconder”
Há dois anos que essa situação se repetia, mas nem sempre as coisas tinham sido assim. Quando se conheceram há 4 anos Reinaldo era um promissor jovem executivo, nascido em berço de ouro, ele tinha vindo dos melhores colégios e faculdades privadas do país e esperava alcançar os mais altos cargos na multinacional em que trabalhava. Nem que fosse pelos contactos que o seu pai mantinha com os donos da empresa.
Marta também era executiva nessa mesma empresa, mas ao contrário dele, ela tinha vindo do nada, sempre fora aluna bolsista nos melhores colégios e faculdades publicas do país, por mérito próprio. E foi também por seu próprio mérito que tinha entrado na empresa e chegado aonde chegou: vice-presidente de uma das melhores e maiores empresas do mundo na área dos petróleos. Ela estava onde estava, porque merecia.
Quando se conheceram Reinaldo era um doce de pessoa, sempre simpático, extrovertido e gentil. Foram esses predicados que a tinham feito apaixonar-se por ele. Mas isso mudou bruscamente logo depois que voltaram da lua-de-mel. Marta tinha sido promovida na empresa, Reinaldo não. Desde aquele fatídico dia, tudo se desmoronou na relação deles. Talvez como forma de escape para a frustração, ele começou a beber descontroladamente.
E nos momentos em que se perdia na bebida descontava suas mágoas na esposa, revelando-se um pequeno déspota machista e chauvinista. “ mulher não tem que trabalhar! Lugar da mulher é na cozinha e na cama!” essas e outra pérolas Marta tinha que ouvir todos os dias. Apesar de tudo havia os momentos de quietude no meio da tempestade, momentos em que ele sóbrio pedia desculpas, e voltava a ser aquele ser gentil, educado e apaixonado que ela conhecera.
Era a esses momentos que marta se apegava com todas as forças. Era por esses momentos que não o abandonava. Embora sua vida pessoal fosse um caos, a vida profissional era um perfeito “ mundo perfeito”. Tinha galgado os degraus dentro da empresa sempre de forma limpa, resultado de uma mistura entre trabalho duro, inteligência e integridade.
Talvez ainda não haja tantas mulheres assim no poder, mas há certamente muitas que sofrem de agressão física e psicológica todos os dias, durante anos. Por isso ainda é preciso que haja um dia internacional da mulher, para que os homens saibam que nós podemos fazer tudo quanto eles fazem, e de salto alto!