Em 2010, cerca de um ano depois
de chegar a Angola, ouvi a expressão: “azar da Belita”. Ouvi-a lá na Rua de
Benguela, num dos muitos convívios organizados pelos parentes que escolhi, a
família Santos, a Família Silveira/Massuquina. Lembro-me de ser corrigida umas
quantas vezes pela Heliana, porque eu insistia em dizer “azar da mana Belita”.
“Esse «mana» aí não existe”, ela dizia. Depois de muita insistência dela
aprendi. Passei a usar a expressão para tudo e mais alguma coisa. Mais que essa
só “azar não é só óbito”, que ganhava de goleada.
Portanto, a expressão sempre me
foi muito querida, de tal forma que tomei como ofensa pessoal essa “música”
lançada recentemente pelo C4Pedro. “Azar da Belita” é assim que se chama a tal
“música”. Um exemplo claro de como se pode transformar uma expressão idiomática
engraçada e útil num insulto claramente machista, numa violência e incentivo ao
abuso das mulheres.
Pedi recentemente a um dos meus
alunos que me arranjasse umas músicas, já que eles as vezes vêm de boleia
comigo e fazem cara de paisagem diante do que oiço. A Pendrive voltou com 200 e
tal músicas, quase todas kizombas e tarraxinhas, algumas conhecidas, outra nem
por isso, umas ouvíveis outras “next”.
Vínhamos a ouvir as novas músicas
quando C4Pedro começou a falar por cima de um instrumental irritantemente
parecido com o som de um despertador: “Quando estou no Club e elas vêm com
aquela mania do estilo: Não quero, sei lá, não fazes o meu estilo, não
gostei de ti. E eu tento me controlar, né? Tipo vou nas calmas…”.
Para tudo! Como assim tento me controlar e vou nas calma? Filho, a mensagem foi
clara: baza! Quem foi que disse que mulher gosta dessa insistência? Onde é que
está escrito que tens que ir mas com calma? Não tens que insistir, ponto. Em
algum momento da história da humanidade criaram esse conceito de que mulher
quando diz não, quer dizer sim e andam a servir-se disso para violar, assediar,
estuprar, saindo sempre ilesos, porque foi culpa dela. Ela é que queria, disse
não mas queria dizer sim. Pior, Ela é que provocou, como é que ela me diz não,
eu que sou o rei da cocada preta. Aliás, rei da coloca…
A música lá começa de verdade e a
lagoa de patetices transforma-se em mar. “Morena, fala comigo, o que estou a
sentir não é normal. Você faz de propósito, dando paulatinamente, mas quando te
agarrar, vais-te arrepender mamã” – Mas assim… Você é que está a sentir coisas
que não são normais e a culpa é da outra? Ainda há a ameaça velada de estupro.
Porque se você diz que vai agarrar a
moça e ela se vai arrepender, fica muito claro que o que quer que seja, não vai
ser consentido…
As meninas no banco de trás
começam a comentar: “essa música é ofensa! Mas esse C4Pedro mesmo vai cantar
ofensa? Assim mesmo é bom?” “Ofensa mesmo, yah?”. “Falta de respeito”. Percebi
que se referiam a parte em que o “King CKwa” se auto-proclamava “rei da
coloca”. Não conhecia a expressão então perguntei o que significava.
O rapaz, calou-se automaticamente
e olhou para fora, pela janela. As meninas começaram a procura de palavras para
explicar de forma clara, sem ofender. Afinal, no fim das contas eu ainda era a
professora e parecia mal falar sobre o assunto, assim, as claras… No fim lá
conseguiram explicar: coloca = posição sexual. Portanto ou outro andava a
apregoar que era o rei da phod*!
Eu posso? Com a fama e a
capacidade de penetração que tem entre os jovens dentro e fora de Angola, C4
Pedro resolveu que o melhor a fazer é incentivar o desrespeito, a violência, o
assédio contra as mulheres. Sim, porque era mesmo o que nos faltava. Não
bastava a violência que já sofríamos, precisávamos mesmo de um apelo mais
forte, nem todos os homens estavam convencidos de que as mulheres são obrigadas
a “dar” o que eles querem, quando querem e mandam… Realmente: Azar da Belita!
Para completar a tragédia o
refrão é cantado por uma mulher, Edmazia, segundo o tio Google, que ajuda a
coagir as outras: “aceita agora, aceita, porque depois vai ser pior”…
Ai mô deuso, “azar mesmo não é só
óbito”, “mi matam só já”!